domingo, julho 04, 2010

Trânsito

As palavras frequentemente falham naquilo para o qual elas foram inventadas: a expressão. As palavras são inóquas para dizer o essencial: são por vezes banais demais, não se ajustam - ai se entende o silêncio expressivo de Marlarmé; as palavras dizem pelo que não é dito - como, aliás, toda forma de expressão o faz. A expressão é esse dizer algo querendo dizer aquilo outro. E bom sucedido no seu exprimir é aquele que alude - ou ilude? - seus intelocutores a ainda um terceiro significado daquilo que foi dito, sendo este terceiro sentido o sentido mais importante e essencial. Ele é o sentido da expressão, ou, em grande estilo, é o sentido dos sentidos: compreendê-lo é compreender o motivo que levou a tal necessidade de expressão do enunciador. Essa compreensão, contudo, só pode se dar de modo aludido e em íntima conexão com os outros dois significados anteriores. Frequentemente, todavia, não apenas a tais sentidos mais diretos relaciona-se o sentido fundamental do expressado: é a falha do discurso direto, lógico, óbvio que o engendra. Justamente porque a linguagem é falha, o terceiro sentido aparece nela de modo genuíno, na medida em que a falha da linguagem alude à incapacidade expressiva da passagem do Um ao Outro. A linguagem é, pois, aquilo que paradoxal e metaforicamente alude à metáfora, sendo a paradoxa metáfora da metáfora.

domingo, outubro 19, 2008

Dia Mundial da Chuva

“Está sendo celebrado hoje o Dia Mundial da Chuva. Em São Paulo, o ato reuniu cerca de 50 mil pessoas na Praça da Sé, onde diversas manifestações artísticas que têm como tema a chuva se apresentaram e se apresentarão durante todo o dia e também a noite. Neste momento, como pode ser visto, o grupo Ximbira, do alto Xingu, está em performance no palco, em reprodução da legendária dança da chuva. Já no Parque do Ipiranga, na zona sul da cidade, houve um grande ato artístico que uniu público e palco: o grupo pós-teatral Juru-key, em parceiria com a prefeitura, despejou cerca de 100 trilhões de litros de gotas d’água, o que criou uma chuva artificial durante aproximadamente 4 horas. Nesse período, os artistas interagiam com o público numa grande gincana em que a diversão e a bagunça estiveram garantidas. Na Biblioteca Monteiro Lobato, no centro da cidade, a criançada se divertiu pintando telas com a temática, escrita por Giulia T., a vencedora do ano passado que conheceu a Indonésia nas últimas férias de verão (foi o prêmio daquele ano), “chuva chove chovendo – chevete canivete valete” e, claro, escrevendo frases que concorrerão para ser a temática do ano que vem. Os três primeiros colocados ganharão uma viagem à Escócia. O projeto, organizado pela ONG VivaChuva, inclui ainda a exibição de todo o material artístico ao redor da cidade, equipado especialmente para ser à prova d’água.

“Se em São Paulo é só festa, em Salvador, Bahia, o dia foi marcado por protestos. O Movimento dos Sem-Chuva (MSC) promoveu uma passeata contra a má distribuição das precipitações pluviométricas. A bandeira do movimento foi 'Dia mundial do DIREITO à chuva', e seus líderes marcaram uma audiência com o presidente para logo depois da chuva.

" 'Estamos confiantes com as recentes deliberações do governo e acreditamos que, se tudo se encaminhar desta forma, em 3 anos 80% das famílias brasileiras terão alguma forma de acesso a chuva pelo menos 3 vezes ao ano, patamar superior ao de muitos países desenvolvidos', argumentou Luiz Henrique Fernandez, líder do movimento desde 1998.

“Fora do Brasil também houve muitas festas e polêmicas. Em Varsóvia, capital da Polônia, fogos de artíficio que se assemelham a chuva colorida foram o auge de uma festa altamente pirotécnica que será ainda lembrada com muito carinho pelos seus habitantes. Já em Nova Orleans o dia, ao invés do que se poderia imaginar, se passou sem grandes protestos; ao contrário, os revoltados deram trégua às autoridades locais que participaram de solenidades em memória aos trágicos acidentes naturais que vêm assolando a cidade.

“Em Moscou 8 pessoas ficaram feridas quando o prédio da ONU foi atacado com coquetéis molotov e bombas caseiras na passeata ‘Pelo dia mundial da neve’, idéia audaciosa que nasceu em 1999, quando foi criado o Feriado Municipal do Boneco de Neve. Neste havia série de competições e gincanas ligadas a esta arte. Foi só em 2004 que a festividade pública se universalizou e tornou-se Feriado Municipal da Neve, em que as competições e gincanas foram extendidas a toda e qualquer forma de expressão artística por meio da neve.

“Teremos agora um rápido intervalo e em poucos instantes voltaremos com mais notícias sobre este dia: Paris e o quadro de 500 m² de uma nuvem, o teto que chove sem molhar numa casa em Lippsala, Suécia, e o obscuro padroeiro cego de Gonzaga, Minas Gerais, que afirma que a chuva é a fala de Deus em braile.”

sábado, outubro 18, 2008

Incomodo

(continuação de Inconveniente, logo ali em baixo)

– Uma moeda a mais é um dia a menos.

Seus sujos olhos, então, voltaram a mirar o infinito inexistente e eu com meus passos falsamente seguros segui naquela trilha que nem sei pra onde levava. Normalmente sentiria vontade de cantarolar uma música, provavelmente do Chico, às vezes do Jim; mas não dessa vez. Ah, é que não sentia vontade de nada, só queria entrar na minha casa, trancar bem a porta e deitar na cama seguro de que aquilo – aquilo – não tinha passado de um sonho; é que tantas vezes isso me aconteceu, como daquela que atropelei um cachorro...


Naquele dia desci sem pressa o elevador, com um friozinho na barriga; é que estava indo para uma prova! Entrei no carro como sempre entrava em qualquer outro dia, e saí da garagem como se fosse um dia qualquer. Acenei ao porteiro, que sorriu e acenou para mim. Ah! quanta harmonia naquela orquestra de pedais e direção.

O farol fechou – parei. O farol abriu – acelerei.

Aquela rua estreita irritava-me profundamente; carros estacionados dos dois lados e só um carro podendo passar por vez naquela trilha asfaltada – melhor acelerar e passar rápido – e carros vindo na direção contrária.

Foi já lá na frente, depois daquele cruzamento traiçoeiro que ninguém respeita a
minha preferência, que acelerei um pouco mais; era uma pequena subida, subidas sempre exigem autoridade.

O automóvel, já aos seus 60 km/h, naquela rua estreita com carros parados dos dois lados e aproximando. Aproximando?

Um animal todo branco, todo ingênuo, andando despreocupadamente à minha frente; por um momento pensei: Acelero? Breco? Buzino? E então já era tarde demais; ouvi indiferente os seus gemidos – foram dois – e aguentei impassível o duplo tranco como se estivesse retirando os cisos. Meu coração bateu forte, fiquei sem reação. Por inércia, o carro não parou, nem eu parei. Por que pararia? Já no próximo farol sentia apenas a sensação de ser uma daquelas minhas fantasias e me censurava por ter me desconcentrado da minha prova...


E a essa altura já estava há alguns quarteirões do insolente mendigo, mas ainda inquieto. Meu deus!, como odeio esses seres, precisam sempre nos incomodar com essas lembranças que suscitam tão ardidamente no espírito de homens sensíveis, os quais, seres humanos que são, estão tão aptos a cometerem erros como todos os outros...

sábado, agosto 02, 2008

Brincando de Polvero Pinocchio

O jogo é bem simples: pega-se um autor ou um personagem célebre e se reconta a história usando apenas a inicial de seu nome. No caso, reconto o primeiro capítulo de Um Copo de Cólera utilizando apenas a letra c de "copo" e de "cólera".

A Chegada

E quando cheguei à tarde na minha casa lá no 27, ela já me aguardava andando pelo gramado, veio me abrir o portão pra que eu entrasse com o carro, e logo que saí da garagem subimos juntos a escada pro terraço, e assim que entramos nele abri as cortinas do centro e nos sentamos nas cadeiras de vime, ficando com nossos olhos voltados pro alto do lado oposto, lá onde o sol ia se pondo, e estávamos os dois em silêncio quando ela me perguntou “que que você tem?”, mas eu, muito disperso, continuei distante e quieto, o pensamento solto na vermelhidão lá do poente, e só foi mesmo pela insistência da pergunta que respondi “você já jantou?” e como ela dissesse “mais tarde” eu então me levantei e fui sem pressa pra cozinha (ela veio atrás), tirei um tomate da geladeira, fui até a pia e passei uma água nele, depois fui pegar o saleiro do armário me sentando em seguida ali na mesa (ela do outro lado acompanhava cada movimento que eu fazia, embora eu displicente fingisse que não percebia), e foi sempre na mira dos olhos dela que eu comecei a comer o tomate, salgando pouco a pouco o que ia me restando na mão, fazendo um empenho simulado na mordida pra mostrar meus dentes fortes como os dentes de um cavalo, sabendo que seus olhos não desgrudavam da minha boca, e sabendo que por baixo do seu silêncio ela se contorcia de impaciência, e sabendo acima de tudo que mais eu lhe apetecia quanto mais indiferente eu lhe parecesse, eu só sei que quando acabei de comer o tomate eu a deixei ali na cozinha e fui pegar o rádio que estava na estante lá da sala, e sem voltar pra cozinha a gente se encontrou de novo no corredor, e sem dizer uma palavra entramos quase juntos na penumbra do quarto
.” Nassar, Raduan. Um Copo de Cólera. Companhia das Letras. 1º capítulo, pág. 9.

Chegada

Casa cheguei, caminhavas, ‘comoda-se carro, cume-da-casa corremos, cortinas cerradas, cauda-de-céu-de-centro, cadeiras confortáveis, calor crepuscular colorido, calma calada; coligar, comigo calado, colorido, comprimido capenguei conversa, caminhei calma e cauteladamente, cozinha cheguei, cetrino cepácio comi centrípeto cenante, circundado, cingido, como celso cavalo, celestialmente cocado, cônscio cínico, cartesianamente cínico coajante, como ciclópeo cercado, cobiçado climaxticamente, centrifugamente cantina corri, corredor cassado, casa corctada, calados, cama caímos coativamente.

Referências

Eco, Umberto. Povero Pinocchio. Comix.
Nassar, Raduan. Um Copo de Cólera. Companhia das Letras.

sexta-feira, julho 25, 2008

Sulca-te o chão


É esta a solidão que desejas e te agradas? Essa solidão que se diz completa, que é desejo? Que completude é essa de anseio?

Ora corres ao MSN, ora ao orkut. O tédio – seria o tédio? – logo te levas de volta ao livro. Mas antes passas e vês – tentas fazê-los estarem sem estarem – aqueles que inconscientemente pensas. Mas é ao fazê-los estarem que sentes aquela aversão, aquilo que não te completaram tomando – como uma sombra – toda a sensação dos românticos momentos de volúpia e prazer, enxotando-os cruelmente. A situação passa-se a desesperadora, angustiante e, covarde que és, foges para o livro. Ali encontrastes combustível para a leitura. Como que freneticamente, devoras como um animal aquele conteúdo prosaico-imaginativo. Mas o devorar de tal material inextenso atiça-te como um raio demoníaco ao desejo pulsante e em brasas da presença deles. E retorna ao computador, para apenas confirmar a ausência deles. A situação se repete – é um ciclo vicioso. E quando, eventualmente, um aparece, agarras-te como um tamanduá vil a vitalidade – a esperança de vitalidade, de completude – daquela conversa privada-impessoal. E sentes, inexoravel e inevitavelmente a cruel sensação de perda de tempo. Pior; certamente porque nadas tens a falar e te constranges a situação e queres – precisas, urges – falar – algo, algo, precisa sair de ti, ser expelido, ergugitado, como um vômito fedorento – falas-te irracionalmente e te acovardas. Crias ódio. Queres estar solo novamente. Mas uma vez agarrado a tua vítima, a vítima está agarrada a ti. Não pela sua vontade; tu a ela, como uma pedra imóvel és quem estás preso, inerte. E inutilmente zangas-te e te acovardas – falas bugalhos. Ofendes-te. Perdes-te, no momento mesmo que diz achar-te. E, então, alienas-te em teu gozo que é o teu soma – e dorme-te para te acordar insabível que te sabes, acreditando piamente na potencialidade prazeirosa de tua solidão noturna, quando deverias, sim, estar a lutar febril e intelectualmente para estar tola e infantilmente deitado em uma cama de lençóis brancos e suaves cobertas, roçando-te ao corpo Dela, olhos fechados, mente branca, budista. Aí sim repousar-te-ás em solidão e serenidade.

segunda-feira, junho 02, 2008

Pós-barbárie

“Auto-escola, também é cultura” é uma frase sintomática do tempo pós-moderno. As auto-escolas são escolas nas quais se aprende a dirigir autos. Automóveis, estes, que são os símbolos máximos da rapidez, do movimento, do individualismo, da massificação, da virilidade, dos desejos da sociedade burguesa, da produção sistemática e alienante; enfim, pode-se dizer que são a essência da sociedade moderna atual[1]. Quem frequenta tais lugares é, geralmente, um público muito fácil de definir: são jovens de classe média baixa até classe altíssima, dos dois sexos, que mal completaram seus 18 anos se inscrevem para receber o que, para eles, seja talvez o maior prêmio da passagem para a vida adulta – por tudo o que foi ligado a ele, direta ou indiretamente, a saber, prestígio, prazer, sexo, adrenalina, poder... – que é exatamente a carteira de motorista. Tais locais são também, em muitos casos, onde ocorrem os primeiros verdadeiros (porque na escola e quando criança ainda estamos apenas aprendendo, não é mesmo?) atos de corrupção – afirmativa do sistema; nada melhor do que a expressão “faz parte” para justificar algo que já está institucionalizado –, que nada é a não ser pagar para receber o prêmio sem o mérito para tal. Mas, no fundo, não é um ato contra o mérito e sim ao contrário: comprar a carta é ter mérito, é ser malandro, é ser subversivo sem o ser, é estar em uma categoria superior em relação aos outros: é fazer propaganda da sua própria marca. Você podia ter passado – qualquer um passaria –, mas, por um ato de escolha – quase que – indiferente, você preferiu comprá-la, por não estar mesmo com vontade de fazer a prova, afinal, você reitera, “eu passaria do mesmo jeito. Já dirijo faz três anos”, acrescenta querendo mostrar que o mérito da malandragem, da subversividade assertiva o acompanha – dirige faz três anos ilegalmente –, é intrínsseco a você mesmo. Nada além disso é a cultura, ou hábito tradicional. É talvez a isso que se remeta a frase inicial, mas não só. Talvez cultura seja mais do que um conjunto de hábitos, desejos e fatos sinônimos de uma determinada sociedade; nesse caso, ela também significa aquilo que Adorno caracteriza (bonissimamente), em seu Indústria Cultural – o Iluminismo como mistificação das massas, a saber, a cultura de massa. Auto-escola é cultura, cultura de massa. É estar inserido na alienante indústria cultural. Nesse sentido, pode-se dizer que ultrapassa-se a mera necessidade – e, mais do que isso, o argumento de “confortidão” do automovel – a necessidade de inserção na cultura de massa. Cultura, aqui, parece ter sido usado no sentido vulgar, ou seja, no sentido de conhecimento libertatório, de algo relevante, como que construtivo, no linguajar vulgar. Ora, realmente, há a sensação de liberdade e, sob o aspecto da ideologia individualista, da classe média e da burguesia, dirigir o é veramente. Eleva-nos aos céus da liberdade individualista burguesa – que mal há em reforçar? – como o conhecimento eleva-nos às graças do bem-verdadeiro.

Mas o significado desta frase transcende o sentido literal; é um paradoxo sem as marcas deste – talvez o primeiro metaparadoxo que se conscientiza como tal. O paradoxo é a marca da sociedade industrial. Bem disso sabe Adorno, o qual, no mesmo texto já citado, usa e abusa destes[2]. Esta frase “auto-escola, também é cultura” é um paradoxo, agora está claro, porque formalmente comete um erro grotesco de português ao transpor sujeito e predicado por uma vírgula. Ao mesmo tempo, em seu conteúdo, remete à idéia de cultura, conhecimento. É como se o sujeito que proferiu tal frase dos sinais do tempo fosse o portador – também o portador, ou seja, quer passar a idéia de que apesar de não parecer, ele o é, sim, realmente – de tal conhecimento. Conhecimento, este, que no aspecto formal não é portado, como a própria frase o demonstra. É, assim, um metaparadoxo a medida em que é e não é um paradoxo: é efetivamente, como vimos, enquanto forma e conteúdo; e apenas um erro enquanto forma e não mais que uma idéia enquanto conteúdo apenas. É um paradoxo do paradoxo; é o paradoxo que se conscientiza como tal. Ou antes fosse. Nada há aqui de consciente; o erro não ocorreu por vontade do sujeito. O que antes parecia emancipatório agora suga as últimas forças vitais. É paradoxal que a libertação dos paradoxos, a conscientização de si, seja aprisionante. É que liberta formalmente, aprisiona intrinssecamente. A ainda desconhecida arma contra o sistema, o espelhamento de seu maior poder, já foi destruída antes mesmo de existir. O que podia ser resistência, a negação consciente dentro da afirmação, não se deu. É o pré-vivo que morreu. Corpo humano que perdeu. É, para parafrasear ainda Adorno, o momento posterior ao da vitória das máquinas sobre o humano, da alienação sobre o consciente, da barbárie sobre a civilização.

[1] Nada confirma mais isso do que tal essência ser uma máquina

[2] Alguns exemplos: “A novidade do estágio da cultura de massa em face do liberalismo tardio está na exclusão do novo” (pág. 28); “Seu [indústria cultural] triunfo é duplo: aquilo que expele para fora de si como verdade pode reproduzir-se a seu bel-prazer em si como mentira” (pág. 30); “(...) mas o gênero de mercadoria de arte, que vivia do fato de ser vendida, e de, entretanto, ser invendável, torna-se – hipocritamente – o absolutamente invendável quando o lucro não é mais só a sua intensão, mas o seu princípio exclusivo.” (pág. 65). Todas as citações tiradas de: Adorno, Theodor W.. Indústria cultural e sociedade. In: O Iluminismo como mistificação das massas. Editora Paz e Terra, Coleção Cultura. Traduzido por Julia Elisaveth Levy.

quinta-feira, maio 08, 2008

No frigir dos ovos...

... um homem resoluto, à noite: “Eu odeio Descartes! E-u-n-ã-o-s-e-i! Odeio aquelas perguntas ridículas!”, pula, grita, bate a cabeça na parede, bate com a mão na cabeça, se soca; “Eu odeio o método! Foda-se o cogito!”, baba, chora, esperneia, arranca os cabelos, puxa a barba. “Regras é o caralho! Essas porras do caralho!”... e assim se vai, até o fim da noite. Quando acorda, já não se lembra de mais na-da. Toma um banho, faz a barba. Penteia o cabelo, faz de seu rosto um bálsamo. Estuda a tarde toda. Sai, de noite, para dar aula. Durante esta, se contém. O ódio e a loucura o vão assomando, mas ele se coloca como homem: “Seja homem” – não deixa escapar, no entanto, pequenas ironias. No fim, treme, gagueja ao responder as últimas perguntas: “No fim das contas, Descartes, no limite, é isso mesmo, quer dizer, o método e a matemática, quer dizer, no fim das contas...”, e para si mesmo: “O fim é sempre o mais difícil”; sai cambaleante da sala de aula e mal espera virar o corredor para abrir aquele sorriso que já é o início da fruição de sua loucura... que delícia! É que durante a semana, nem se lembra, isso não o aflige: é o professor resoluto para todos. É dali a uma semana que...

quinta-feira, fevereiro 28, 2008

A revolução na educação brasileira

Num futuro não muito distante, surgirá a solução final para a educação brasileira: as aulas nas escolas não serão mais ao vivo, mas sim on-line. O funcionamento será muito simples, mas antes é necessário entender o background.
Sem muitas pretensões, os cursinhos já dão aulas via internet[i]. Algum dia, porém, se terá um estalido revolucionário. A coisa se dará do seguinte modo. Um cursinho Anglo ou Objetivo do Acre ou do Piauí despedirá por um motivo x um professor de física. As dificuldades de encontrar um profissional ao nível de excelência da empresa incentivará a famigerada imaginação brasileira (para momentos de dificuldade); por que não “importar” as aulas de um professor de São Paulo? Não seria difícil, já que as aulas já são todas esquematizadas. O professor apenas representa. Pode-se diminuir o número de professores, diminuindo os gastos! Afinal, é só gravar as aulas e enviar via internet. Por que tantos professores se todos fazem a mesma coisa? Um apenas basta. A idéia, diante de tanto otimismo, será testada.
Essa se mostrará satisfatória estatísticamente; os alunos, em média, melhorarão nos simulados e o custo da aula ficará mais baixo! Por isso, começará a ser adotada em relação a outras matérias. Biologia, química, matemática, gramática... o cursinho se tornará pioneiro nas aulas gravadas. Sua produtividade aumentará significativamente. Logo a mídia voltará seus olhos de falcão para o modelo de ensino lucrativo e eficiente. Outros cursinhos, então, adotarão o método. As escolas particulares derivadas de cursinhos, uma a uma, também.
Tal rebuliço, como era de se esperar, atingirá mais dia menos dia o ensino púbico. O ministro da educação aparecerá nas primeiras páginas dos jornais assinando o documento que aprovará a reforma na educação pública brasileira; um passo rumo ao futuro! Nada de professores na sala de aula! Enfim uma finalidade para os computadores da rede pública! As aulas, de então por diante, serão virtuais, terceirizadas dos cursinhos. Pelo projeto, o investimento público em educação cairá significativamente, apesar do investimento inicial. Parcerias público-privadas serão travadas entre empresas fornecedoras de computadores, telões, etc e o governo público. Desta maneira, todos terão acesso a uma educação de qualidade, comum a todos. Finalmente poderá se medir o mérito pessoal – todos assistirão a mesma aula, todos partirão do mesmo patamar. E melhor ainda. Em caso de falta, o aluno pode assistir à aula em casa! Le crème de le crème da educação estará disponível a todos!
Em meio século, a nação brasileira se orgulhará de exportar para o mundo o vitorioso método de educação 100% tupiniquim.

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É claro que em toda mudança sempre alguém sai perdendo: e os professores, que não dão mais aulas? E as dúvidas dos alunos? Muito, muito simples. Os professores (apesar das greves – que não servirão para mais nada – e das passeatas), um a um, vão se sujeitar a ficarem de plantão para tirar dúvidas ou de bedéis nas salas de aula. Se formará um grupo de professores de elite – aqueles que gravam as aulas – e outro de professores plantonistas/bedéis. Ambos os grupos, afinal, numa utopia neoliberal, podem até ser tercerizados.

[i] Ver site http://www.cursoanglo.com.br/webstander/ e ir em TV WEB

sexta-feira, dezembro 21, 2007

Inconveniente

No meio do caminho havia um mendigo. Havia um mendigo no meio do caminho. Imóvel e cinzento como uma pedra, as pessoas naturalmente desviavam-se dele como se desvia de uma poça. Mas essa tinha olhos escuros como o breu, que fixavam o distante, o nada. Estavam secamente molhados, talvez pela sujeira, talvez não. Ele cuspiu e eu pude ver; poucos dentes em contraste ao turbilhão de edifícios que o cercava.

Carros passavam rasgando a realidade – intransigentes –, pessoas apressavam o passo ao avistá-lo – aquele-ser-inconveniente, quase-bicho-pouco-homem – e os semáforos, os letreiros, os faróis, as janelas... Era tanto brilho barulhento, tanto movimento naquela noite – escura noite – e ele sombrio, quieto, sozinho.

Tão rápido que mal pude perceber e por um motivo que nem-sei-bem-qual-foi, senti pena. Estava incomodado, mas não deveria. Sem perceber, joguei uma moeda que bobamente – dissimulada até – caiu em seu colo. Suas unhas sujas tocaram a moeda. Senti um calafrio paralisante nesse momento; eram seus olhos sujos nos meus olhos e a moeda que voltava inesperadamente às minhas mãos. Admito: nada compreendi.

Senti ódio, terror; indecisão. Continuava autoritariamente o caminho inexistente ou enfrentava aquela pergunta dolorosa?

Antes que eu pudesse dizer palavra, foi ele quem disse:

- Enfia no cu essa moeda de merda, meu senhor.

Fiquei sem reação. Sua voz rouca, de pouco uso, e seu ríspido tom nem um pouco irônico foram denúncias da ofensa que sentira. Abaixei a cabeça – por que abaixara a cabeça? – Levantei-a. Quem se sentia ofendido dessa vez era eu. Oras, só tentara ajudá-lo!
Em meio à minha raiva e transtorno, ele continuou:

- Uma moeda a mais é um dia a menos.

Seus sujos olhos, então, voltaram a mirar o infinito inexistente... (continua)

terça-feira, dezembro 18, 2007

A era do ketchup

A modernidade é ketchup. Bem disso sabia Wilson, um ex-dogueiro de uma Kombi em frente a um supermercado de madame. Fora despedido ao ser pego comendo ketchup escondido: Sim caro consumidor desta história, ele era mais um dos milhares de viciados em ketchup. A partir de então, foi visto em muitas madrugadas em imensos supermercados 24 horas a comprar o seu ketchup em meio a jovens comprando bebidas e cigarros. Freqüentar supermercados, como o bom consumidor deve saber, não é um hábito saudável, principalmente àqueles que devem se conter por falta de poder aquisitivo. Wilson, o mais humano dos humanos, começou a entrar em transe em meio a tantos desejos de consumo reprimidos: comidas e mais comidas, produtos de limpeza, temperos, vinhos, sandálias, e até carros de controle remoto! Milhares de produtos que faziam do ketchup insuficiente. Mais grave ainda, nobre consumidor, era o fato de o seu dinheiro haver acabado: nem ketchup poderia mais comprar. Foi visto, então, em muitas madrugadas, a vadiar como um mendigo, de bar em bar pedindo porções gratuitas do imperialista vermelho.

Em uma dessas vadiações, Wilson foi atraído para uma casa suntuosa e com cheiro de ketchup. Mal sabia o homem cujo nome era o mesmo da marca de bolinhas de tênis que ao passar por ela, um grupo de músculos, cochichavam: “Aqui é o melhor puteiro da cidade. Não há no mundo quadril igual ao da Delícia-Vermelha” – e todos concordavam maquinalmente. Era uma luxuosa casinha no estilo Neocolonial americano: Imensas colunas gregas que distorciam de todo um resto barroco clássico, com luminosos multicoloridos. A casa era o sonho de consumo da era do ketchup. Era também uma embalagem bonita para Delícia-Vermelha. A bem da verdade, Delícia-Vermelha era um pote de ketchup: A mesma forma fina até o quadril que se alongava; o mesmo vermelho em seus lábios e em seu vestido e em seus saltos que insulta a uma paixão-adoração; o mesmo sabor viciante; o mesmo prazo de validade. Era o sonho de consumo da modernidade. Nesta noite especialmente, como uma promoção especial, estava em um de seus melhores dias. Era um imenso ketchup delicioso que atraía infinitamente com sua dança do ventre. Ela dançava como uma deusa. Era algo tão chamativo, tão atrativo que nem o mais beato dos beatos resistiria. Até quem já estivesse satisfeito com a sua esposa não estaria apto a fugir das presas do seu feitiço moderno; a propaganda. Delícia-Vermelha seria consumida mais banalmente do que um ketchup, mais simplesmente que um doce comprado na promoção “leve-um-prato-e-ganhe-um-doce”. Poucos perceberam o fato de Delícia-Vermelha não ser apenas uma mulher-produto. Eram várias: várias que seriam sempre substituídas pela indústria pornográfica. Eram a mesma e não eram. Delícia-Vermelha era apenas um símbolo, uma forma, (um ícone do passado, talvez): hoje era reproduzida às milhares. A sociedade moldou a forma dela e agora a produzia em larga escala para que pessoas como Wilson e nossos educados leitores pudessem consumi-la.

E foi isso que ele fez, imitando toda a sociedade. Consumiu-a, em um só instante, em busca da felicidade que não encontraria. E depois nunca mais foi visto: foi engolido e consumido por toda aquela vermelhidão deliciosa e moderna: Wilson finalmente integrou-se fisicamente ao ketchup da modernidade.